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A campeã paralímpica que viveu ‘presa ao próprio corpo’
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3 anos atrásem
Por
George LuizDesde pequena, Victoria Arlen sonhava em ser atleta.
Mas, aos 11 anos, uma condição (até então inexplicável) a deixou em estado vegetativo — e ela acordou quase três anos depois em uma cama de hospital “presa” em seu corpo, incapaz de se comunicar ou se mover.
Ela estava consciente de tudo que acontecia à sua volta, mas ninguém sabia.
Em entrevista ao apresentador Harry Graham do programa de rádio Outlook, da BBC, em 2018, ela compartilhou sua história de superação — que a levou a conquistar em tempo recorde uma medalha de ouro na natação nos Jogos Paralímpicos Londres 2012.
Quando a professora de Victoria Arlen perguntava o que ela queria ser quando crescer, a resposta estava na ponta da língua:
“Medalhista de ouro e nadadora olímpica.”
Victoria cresceu em New Hampshire, nos Estados Unidos, ao lado dos dois irmãos trigêmeos. E o esporte sempre foi uma parte importante da sua vida.
“Eu era boa em natação e hóquei na grama. Fiz dança competitiva por um tempo, mas nadar era realmente o que eu amava, minha paixão”, diz a jovem, hoje com 26 anos.
Ela esbanjava saúde e ótima forma física — até que, por volta dos 10 anos, algo mudou.
“Meu sistema imunológico começou a ficar comprometido. Quando completei 11 anos, a cada duas semanas eu pegava uma pneumonia, uma gripe, tinha desmaios, desenvolvi asma. Como eu sempre melhorava, não era muito uma preocupação.”
“Mas, em 29 de abril de 2006, comecei a sentir uma forte dor do lado direito (do meu corpo) e foi meio que o início da jornada”, relembra.
Foi quando Victoria começou a perder o controle sobre algumas partes do corpo.
“(Primeiro) foram minhas pernas e, em seguida, a parte superior do meu corpo, meu tronco, minhas mãos. E depois minha voz.”
“Perder o controle completo de todo o seu corpo, mas ainda estar mentalmente consciente, é aterrorizante”, afirma.
Este processo durou cerca de dois meses. O rápido (e até então inexplicável) declínio físico de Victoria afligia não só a ela, mas a todos que estavam à sua volta.
“Meus pais estavam em pânico, tentando descobrir o que estava acontecendo e por que a filha deles estava se deteriorando tão rápido.”
A situação se agravou ainda mais quando ela estava sendo transferida de hospital.
“Eu só me lembro de entrar na ambulância e tudo meio que escureceu”, conta.
Era agosto de 2006, e Victoria estava entrando em estado vegetativo. Os próximos anos seriam completamente perdidos para ela.
O despertar
Somente no início de 2009, a jovem voltaria a ficar consciente de novo.
“Acordei basicamente em um quarto de hospital, com pessoas falando ao meu redor, mas ninguém reconhecendo o fato de que eu estava fazendo uma pergunta.”
“Havia um tubo na minha garganta, algo estava respirando por mim, eu estava meio presa. Não conseguia me mover e não conseguia gritar.”
“Me lembro de ficar (perguntando): ‘Onde estou? O que está acontecendo?’ Eu ficava tipo: ‘Oi, oi’. Sem perceber que estava, na verdade, ‘falando’ dentro da minha cabeça, e não para alguém.”
Victoria finalmente se deu conta de que as pessoas à sua volta não faziam ideia de que ela estava consciente.
“Quando percebi que eles não sabiam que eu ‘estava’ ali, que eles não sabiam que estava ‘trancada’, foi aí que comecei a ficar realmente apavorada com o fato de estar ‘presa’ e ser considerada um caso perdido.”
Para não ser tomada pelo pânico, ela conta que tentou se concentrar no lado positivo da situação:
“Pelo menos eu tenho meu cérebro, pelo menos eu posso ter esses pensamentos… Meu corpo pode não funcionar, mas eu tenho minhas memórias. A Victoria ainda está aqui”, ela pensava.
Arlen havia recuperado a consciência, mas ainda não fazia ideia de quanto tempo havia se passado desde que apagara na ambulância.
“(Até que) algum médico ou alguém mencionou o dia, e foi quando eu me dei conta: ‘Meu Deus, passou esse tempo todo, agora sou uma adolescente. E isso também me deu pânico.”
“Senti que todos aqueles anos haviam sido roubados de mim, esse período para crescer e aprender…”, desabafa.
Não havia nenhuma indicação de que Victoria estava consciente. Mas ela estava ciente de tudo que acontecia à sua volta.
Seus olhos estavam abertos e, além de escutar, ela conseguia enxergar, mas o que ela via dependia de onde seus olhos estavam fixados — “eles meio que tinham vontade própria”, segundo ela.
“Nove entre dez vezes, eles rolavam para trás na minha cabeça, e meio que ficavam caídos para um lado.”
“Eu piscava, mas não quando queria. Era uma espécie de movimento involuntário”, relata.
Abusos
Enquanto estava neste estado, Victoria sofreu abusos por parte da equipe médica.
“Você não imagina como os médicos e enfermeiros podem ser horríveis e desrespeitosos quando pensam que você está inconsciente e incapaz de se comunicar ou é dada como uma causa perdida.”
“Lidei com muitos abusos e negligências da equipe médica”, revela a jovem, que preferiu não entrar em detalhes sobre a natureza dos abusos durante a entrevista.
Mas, em seu livro de memórias, Locked in: The Will to Survive and the Resolve to Live, ela descreve os abusos como repetidas agressões físicas.
Ela diz que preferiu deixar essa parte de sua história para trás e por isso não processou nenhum dos hospitais em que ficou internada.
Enquanto estava acamada, Victoria também testemunhou conversas que nunca deveria ter escutado.
“Tenho uma lembrança muito forte dos meus pais saírem para almoçar, e duas enfermeiras entrarem. Elas estavam fazendo algum procedimento, e uma enfermeira disse para a outra: ‘Você acredita que os pais dessa menina acham que ela vai ficar bem? Essa criança é um caso perdido’.”
“Eu só me lembro de ouvir e pensar: ‘eu estou ouvindo’.”
“Eu queria gritar com elas. Talvez soltar alguns palavrões naquele momento.”
Apoio da família
Naquela ocasião, o prognóstico de Victoria não era, de fato, nada bom — para a equipe médica, parecia muito improvável que ela se recuperasse.
Mas a família se recusou a aceitar. E a cada visita, os pais e irmãos faziam questão de expor Victoria ao que estava acontecendo no mundo lá fora — davam a ela roupas da moda, por exemplo, e botavam para tocar músicas que faziam sucesso entre os adolescentes, além de sintonizar a televisão em seus programas favoritos, como Dancing with the Stars, o Dança dos Famosos americano — do qual ela sonhava participar um dia.
“Eles tentavam fazer tudo que achavam que poderia colocar a Victoria para fora ou pelo menos manter a Victoria, Victoria”, diz ela.
“Meu irmão costumava dançar Lady Gaga para tentar me fazer rir.”
A parte mais difícil, no entanto, era quando seu pai assistia a programas de gastronomia.
“Ver comida e não ser capaz de comer era uma espécie de tortura”, relembra.
Apesar de nunca ter perdido a esperança, a família sofria profundamente.
“Eu via o medo nos olhos dos meus irmãos quando eles vinham me ver.”
Quando as visitas iam embora e as luzes se apagavam, Victoria conta que criava roteiros de histórias na cabeça para se entreter e se manter produtiva.
“Eu meio que tentava visualizar a vida que me imaginava vivendo, as experiências que queria ter, os lugares que gostaria de ir… Eu realmente tentava focar na gratidão, na esperança e no otimismo.”
‘Começo do milagre’
Até então ninguém sabia o que estava por trás da doença de Victoria — os médicos estavam cientes que havia uma inflamação no cérebro, mas não conseguiam identificar a causa. E ela própria foi descobrindo sua situação aos poucos, pescando fragmentos de conversas.
“Descobri que ficaria paralisada ouvindo uma conversa aleatória, assim como soube que havia danos irreversíveis na minha coluna, danos no meu cérebro… Descobri tudo isso por meio de conversas entre enfermeiros e médicos.”
Victoria tinha convulsões frequentes ao longo do dia — e os médicos resolveram prescrever um remédio para ela dormir, que de alguma forma acabou com as convulsões.
Foi quando seu corpo experimentou subitamente uma calma desconhecida, o que levou a uma mudança milagrosa.
“Pela primeira vez em quase um ano, desde o início das convulsões, tive um momento para respirar. E percebi que podia mover meus olhos.”
“Minha mãe entrou no quarto, e eu apenas olhei para ela e a segui com meus olhos. Ela veio até mim e disse: ‘Se você consegue me ouvir, você pode piscar? Pisque uma vez, pisque duas vezes, apenas pisque’.”
“E eu não parei de piscar. Esse foi o começo do nosso milagre.”
“Tive muitos momentos realmente extraordinários, mas, de longe, este momento foi a minha maior conquista, porque foi o momento em que finalmente mostrei à minha família, mostrei à minha mãe: ‘Ainda estou aqui’.”
“Ela começou a chorar, e dentro de mim eu ficava pensando: ‘Que bonito isso’.”
Aos poucos, Victoria retomou o controle de seu corpo novamente, e foi abrindo canais de comunicação com o mundo exterior. De piscar, ela passou a apontar para um quadro com o alfabeto e, na sequência, a usar linguagem de sinais — até o momento em que ela conseguiu dizer suas primeiras palavras.
“As primeiras palavras que disse à minha família foram: ‘Eles me machucaram'”, recorda a jovem, fazendo referência aos abusos que sofreu por parte da equipe médica.
“Foram primeiras palavras tristes, mas eu realmente precisava dizê-las.”
“Contar à minha família que eles haviam me machucado, foi como se eu retomasse o controle que havia sido tirado de mim”, avalia.
E Victoria focou todos seus esforços na recuperação.
“Sou muito teimosa. Então, se você me disser que não posso fazer algo, vou provar que você está errado.”
“Trabalhei todos os dias com um fonoaudiólogo, um terapeuta ocupacional, um fisioterapeuta, era muito tempo que precisava recompensar.”
Ela finalmente recebeu alta — e deixou o hospital em uma cadeira de rodas, paralisada da cintura para baixo.
“Foi devastador. Eu tive dificuldade em aceitar, mas também pensava: ‘É melhor do que estar em uma cama de hospital’.”
O diagnóstico
Enquanto se recuperava, os médicos descobriram a causa do seu declínio de saúde: dois distúrbios neurológicos raros, mielite transversa e encefalomielite aguda disseminada.
Estas duas condições fizeram basicamente com que seu corpo atacasse seu cérebro e medula espinhal.
Pouco antes de completar 16 anos, ela havia melhorado a ponto de poder voltar para a escola. Mas não foi um retorno fácil.
“Foi um pesadelo.”
“Eu estava fora da civilização há 4 anos, então era alvo de bullying”, relembra.
“Eu pensava: ‘O que é Facebook, o que é iPhone?’ Quando eu tinha 11 anos, celular era uma grande coisa: era preciso ser adulto para ter um. E agora todo mundo tinha um celular.”
Aos poucos, ela conseguiu se reinserir — graças, principalmente, à ajuda dos irmãos. Foram eles, inclusive, que a levaram de volta para sua grande paixão: a piscina.
“Eu era o tipo de criança que você não consegue tirar da água. Adorava estar na água. Mas a ideia de nadar sem minhas pernas me apavorava.”
“Meus irmãos diziam: ‘Temos que superar esse medo da Victoria. Precisamos levá-la de volta ao lugar que a deixa mais feliz’.”
“Então eles colocaram um colete salva-vidas em mim, agarraram meus braços e minhas pernas e pularam comigo na água”, conta.
O sonho (e o ouro) Paralímpico
Começava ali sua trajetória na natação paralímpica. Victoria botou toda sua energia no esporte — e aprimorou sua técnica a cada dia.
Mas quando compartilhou com seu treinador o desejo de disputar os Jogos Paralímpicos Londres 2012, a resposta foi um banho de água fria.
“Ele respondeu: ‘Você quer dizer, daqui a um ano?’ E eu pensei: ‘Sim’. E ele disse: ‘Ah, querida, você não tem chance, as pessoas treinam por anos e anos, e você acabou de voltar para a piscina’.”
“Foi como levar uma facada”, recorda.
Mas sua mãe havia ouvido a conversa. E, na volta para casa, parou o carro e disse à filha algo que ela nunca vai esquecer.
“Ela apontou o dedo para mim e disse: ‘Nunca deixe ninguém dizer que você não pode fazer algo. Se você acredita que pode fazer algo, trabalhe duro nisso, você pode alcançar qualquer coisa. Eu estaria condenada se deixasse um treinador qualquer dizer o que você é capaz, dado o quão longe você já chegou’.”
Victoria mudou então de treinador.
Os Jogos Paralímpicos Londres 2012 aconteceram apenas três anos depois de ela ter recuperado a habilidade de piscar.
E Victoria não só entrou para a equipe, como conquistou a medalha de ouro nos 100m estilo livre (S6) — e três pratas (50m livre, 400m livre e revezamento 4x100m livre).
“Foi muito louco estar no pódio e me dar conta de que dois anos antes meus irmãos estavam me jogando na piscina. (…) Foi definitivamente um momento incrível.”
“(Só que) ganhar o ouro não se tratava do ouro em si, mas de olhar para as arquibancadas e ver minha família. Vê-los pela primeira vez chorando lágrimas de alegria, em vez de lágrimas de tristeza e medo.”
“Aquela medalha tinha um significado maior. Era sobre nossa família e o fato de nenhum de nós ter desistido”, avalia.
Primeiros passos
Ganhar a medalha de ouro paralímpica não foi suficiente para Victoria. Havia algo que ela estava desesperada para conseguir: a habilidade de andar.
A natureza da sua condição era muito rara. E, a princípio, não estava claro se ela voltaria a andar. Os efeitos no longo prazo do distúrbio que ela teve variam de pessoa para pessoa.
Ela decidiu então ignorar os prognósticos mais uma vez.
“Mentalmente, eu não conseguia superar o fato de que eu tinha literalmente desafiado todos os prognósticos, exceto aquele.”
Com a ajuda dos pais, ela passou então a se dedicar ao projeto de reabilitação para voltar a andar — eram seis horas de treinamento diário.
“Era uma espécie de (processo de) regeneração. Mover as pernas, lembrando-as de trabalhar, para recriar as redes neurais, reconectar as redes neurais”, explica.
“Após dez meses de treinamento rigoroso e intenso, senti uma fisgada no meu quadril direito. Era uma contração muscular, que eu conseguia ativar.”
Até que, na primavera de 2016, Victoria foi capaz finalmente de dar seu primeiro passo sozinha — dez anos depois do último passo que havia dado.
“O primeiro passo foi bem vacilante. Caí bastante, mas foi incrível. Me lembro de caminhar até minha família e dar um abraço neles de pé. De abraçar meus treinadores de pé. E pensar: ‘Nossa, como sou alta’.”
A partir daí, Victoria não parou mais — se tornou comentarista esportiva, apresentadora de televisão e palestrante motivacional, além de cofundadora junto à mãe da Victoria’s Victory Foundation, ONG que ajuda pessoas com desafios de mobilidade.
Ela realizou, inclusive, outro sonho de infância: participar do programa Dancing with the Stars. E ficou em quinto lugar na competição em 2017.
“Sei o quão precioso é cada dia, cada momento, cada respiração — e não quero perder um momento sequer”, diz ela.
“Se eu pudesse voltar e dizer algo para a pequena Victoria, deitada naquela cama, seria: ‘Adivinha o que vai acontecer? Você só precisa continuar lutando’.”