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Cultura

Glauber, um revolucionário na TV

Quarenta anos após a morte de Glauber, lenda do cinema e da TV nacional, relembramos seu legado

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Sempre aos domingos, entre fevereiro e outubro de 1979, enquanto a Globo exibia o Fantástico, Glauber Rocha fazia aparições incendiárias no programa Abertura, na TV Tupi. A televisão brasileira nunca tinha transmitido nada como aquelas intervenções em tom anárquico, em que o cineasta dividia a tela com famosos e anônimos, frequentemente nas ruas. Nunca se tinha visto uma câmera tão solta, quase autônoma, nem um “apresentador” tão cheio de opiniões, num momento em que o jornalismo e toda a programação televisiva ainda se acomodava cautelosamente aos sinais incertos de liberalização da ditadura. O próprio título do programa se referia a isso: o general Ernesto Geisel, que presidia o país, havia prometido uma abertura “lenta, gradual e segura” do regime.

Quarenta anos depois de sua morte (em 22 de agosto de 1981), Glauber deixou rastros que se encontram não só no cinema, mas também na televisão. Os programas estão preservados tal qual os filmes, e não foram atingidos pelo recente incêndio nos galpões da Cinemateca Brasileira, que no entanto consumiu boa parte dos arquivos em papel reunidos sob o título Tempo Glauber, um trabalho que começou a ser feito pela mãe do cineasta e foi mantido (e felizmente digitalizado) por sua filha mais velha, Paloma Rocha.

Abertura foi criado e dirigido por Barbosa Lima Sobrinho, advogado, historiador e jornalista com uma vida dedicada à defesa da democracia, e contava com uma equipe de escritores e cientistas políticos, além de Glauber e o psicanalista Eduardo Mascarenhas. A pauta era o processo de redemocratização do país. A censura governamental, contudo, continuava em vigor. Nada que inibisse Glauber, cujas aparições eram ancoradas por dois personagens, o nordestino e cabo-man Severino e o guardador de carros Brizola, morador da comunidade de Santa Marta, no Rio de Janeiro. “Eu considero essa fase como uma continuidade da estética da fome preconizada por Glauber nos anos 1960: ir para as ruas com a câmera na mão e filmar um povo sem maquiagem, sem nenhuma tese preconcebida”, diz Paloma.

“Glauber se dava muito bem com o cinegrafista e aparecia sem gravata, cabelo despenteado, muitas vezes de costas para o espectador, numa relação sem intermediações com os entrevistados”, lembra Paloma. Ela concluiu no início do ano o documentário Antena da raça, codirigido por Luís Abramo, que enfoca esse período da obra de Glauber, imediatamente anterior à realização de seu último longa, A idade da terra. No documentário é possível ver Glauber entrevistando um dos pilares civis da ditadura, o governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, que se vê obrigado a defender – contra a própria biografia – a democracia e a liberdade de imprensa. Era um Glauber cheio de humor satírico, que não aparece muito em seus filmes, segundo Paloma. ”Ele se via como uma vedete da televisão.”

Poucos anos depois, o gesto seria praticamente repetido por Marcelo Tas, da produtora de vídeo Olhar Eletrônico, ao entrevistar Paulo Maluf. E Tadeu Jungle, da produtora TVDO, entrevistaria, com muita ironia, anônimos no Viaduto do Chá, em São Paulo. Para Solange Farkas – criadora, em 1983, do festival Videobrasil, hoje Associação Cultural Videobrasil –, as intervenções de Glauber no programa Abertura foram a principal inspiração dos grupos que se aglutinavam em torno de uma grande novidade no mercado (estrangeiro), as câmeras U-Matic. Eram equipamentos que funcionavam com cartucho, relativamente leves e ágeis, sem as limitações dos equipamentos de cinema.

Com câmeras trazidas de contrabando para o Brasil, a Olhar Eletrônico e a TVDO partiram para uma produção desenfreada que só encontrou local de exibição no Videobrasil – um pouco mais tarde, o surgimento do videocassete mudaria as coisas. Integravam a Olhar Eletrônico nomes posteriormente famosos com Tas, Fernando Meirelles e Marcelo Machado, entre outros. A TVDO era liderada por Tadeu Jungle, Walter Silveira e Pedro Vieira. Correndo por fora, no campo da videoarte, estavam Eder Santos e Sandra Kogut, que hoje se exercita no cinema.

“Os produtores independentes de vídeo atuavam num ambiente posterior à ditadura militar, mas a discussão sobre liberdade de expressão não estava encerrada”, diz Farkas. “A ideia era que não se consumia o audiovisual como arte por causa da presença da televisão, sempre igual ao que havia sido durante o regime ditatorial. Estava em jogo a intervenção no espaço comunicacional e o vídeo viria como linguagem híbrida e subversiva dentro do sistema audiovisual.” Para ela, foi Glauber quem pôs na televisão o que faltava: a cara do povo. “Ele considerava a televisão o cinema popular por excelência.”

Farkas observa que a chegada do vídeo portátil ao Brasil foi muito diferente do que ocorreu no resto do mundo. Enquanto no exterior o formato U-Matic foi recebido com entusiasmo por artistas experimentais, no Brasil “o lugar natural do vídeo era a televisão”. “Chegou-se mesmo a pensar ingenuamente em invadir a programação televisiva, sem levar em conta que havia uma política de telecomunicações a ser questionada e combatida, o que até hoje não conseguimos. Só existia TV aberta e sujeita a concessões governamentais. A TV era porta-voz do Estado, mas o vídeo de certa forma permitiu o acesso aos meios de produção.”

Abertura para o inesperado

Segundo Tas, a reputação das duas produtoras pioneiras de São Paulo se assemelhava à disputa entre os fãs dos Beatles e dos Rolling Stones: a Olhar Eletrônica era mais comportada e a TVDO mais anárquica. No entanto, ambas pretendiam o mesmo: chegar à televisão, desde que a televisão se adaptasse ao que produziam, e não o contrário. Era uma ideia romântica, mas aos poucos seus produtos foram ocupando pequenos espaços e a estética acabou chegando à Globo, em programas como TV Pirata e a série Armação Ilimitada. Jungle creditava sua inspiração a Glauber e a Chacrinha, que, como o cineasta, não tinha medo de incorporar a seu programa o inesperado e a liberdade de errar – duas coisas que a televisão “séria” abominava, por razões acima de tudo políticas. Bem longe da TV, uma câmera U-Matic acabou chegando ao Teatro Oficina, comprada de Fernando Meirelles. A trupe teatral passou então a documentar tudo o que fazia. “Era como um Big Brother, só que dos brothers”, resume o diretor José Celso Martinez Correa.

Ainda hoje os vídeos de Glauber no programa Abertura guardam seu potencial explosivo. Paloma, que já havia abordado a vida e a obra de Glauber no filme Anabazys, quis em Antena da Raça “atualizar o discurso” das intervenções. Ela percebe ali o retrato de um momento de euforia diante da perspectiva de tempos melhores e democráticos, “enquanto atualmente se vive o contrário, com a ascensão do autoritarismo, do obscurantismo, do cerceamento da liberdade de expressão, do estrangulamento da produção cultural”. Ela pretende que seu filme “projete Glauber para o futuro”. “O que está dito nos vídeos são coisas básicas: ele não quer mais saber de papo, de discurso. Quer soluções para a educação e a saúde. E pergunta por que a burguesia é tão cruel.”

Fonte: Revista Cult | Márcio Ferrari

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